Antologia do Poder II , A Primeira Baixa
Nos tempos da Ilha Velha ninguém tinha brinquedos , acho que nem tinhamos a noção precisa do que eram brinquedos , não foi por isso que deixamos de industrializarmo-nos ...
As qualidades necessárias aos artigos eram simples , a matéria prima devia estar á mão de semear , para não dar origem a muitas ondas serem os mais parecidos possiveis e ter uma utilização que provocasse jorros de adrenalina no seio dum grupo rebelde mas bem hierarquizado .
A primeira peça a sair da linha de montagem foi o arco com a gancheta , uma produção fácil ,consistia em gamar de qualquer lado um aro metalico fino com 30 a 60 cm de diametro e construir com arame uma gancheta com uma curva lateral num dos extremos , que servia para empurrar e equilibrar o arco durante as corridas .
Se se estão a perguntar onde entra a adrenalina numa corrida de arcos com ganchetas é porque nunca experimentaram correr num passeio equilibrando um arco com um arame , o que limita o tempo em que podemos levantar os olhos para escolher o percurso , os lampiões , as pessoas em contramão , um poletão compacto onde passar uma palheta ao gajo da frente ou ser rasteirado estava apenas dependente das alianças e desavenças que o tempo cimentava e um constante chega para lá onde as cabeçadas laterais , as cotoveladas e os empurrões eram sempre mais importantes do que a corrida .
Perto da meta já ningúem pensava nas ganchetas , o importante era ganhar , o aro numa mão e a gancheta noutra , eram os 100 metros livres , quando restava algum folgo as acusações de deslealdade e falta de fair-play alteravam de novo o rumo desportivo e tinhamos luta livre ...
No meio de tudo isto havia uma regra que era importante não quebrar , chorar era algo inaceitavél punido com a explusão da tribo , as meninas é que choram , era a regra nº 1, e ali não havia lugares para meninas ...
As cicatrizes eram ostentadas com orgulho , era uma cena de machos latinos ...
Se estão a achar tudo isto muito selvagem esperem até vos contar do nosso hospital, é verdade tinhamos um hospital , de insectos ... Era tão dificil encontrar insectos doentes que optamos por experiencias geneticas , melhorar e corrigir dentro dos possiveis as falhas do criador , alguns tinham asas exageradamente grandes , demasiadas pernas , muitos pelos , se calhar eram mais experiencias de cosmetica do que genetica , nós gostavamos de pensar que estavamos a melhorar a natureza ... Mas levavamos o assunto muito a sério , deixar morrer um paciente não era opção e o
coitado envolvido num caso de negligencia médica o mais provavel é que além do risco de expulsão da ordem tivesse que comer o cadaver ....
Um dia a tribo foi confrontada com uma situação para a qual ao contrario do habitual não tinha um plano A muito menos um B , morreu um dos membros do nucleo duro , o "maluco" , o mar ficou com ele .
Não era por acaso que lhe chamavamos o maluco , era maluco , tinha cara de maluco e só fazia maluqueiras , era o nossa ponta de lança , sem a minima noção do perigo e uma atração fatal por ele , nos tempos de crise , nas guerras dos calhaus , comandava as tropas , 10 metros á frente , sem escudo , as pedras que chuviam á volta não o pareciam incomodar , catalizava as nossas energias e tornava-nos invenciveis ... Perguntava-me frequentemente como é que o Maluco era atingido tão poucas vezes , talvez as pedras se assustassem com aquele olhar tresloucado ou achassem que nem sequer havia espaço naquela cara para mais uma cicatriz , a sorte protege os audazes ?
Afinal naquele tempo todo vi-o apenas 1 ou 2 vezes com a cabeça rachada por uma pedrada .
Ninguem percebia muito bem porque ele não estava ali connosco e ninguem sabia também muito bem onde estava , no dia do enterro foi feita uma reunião informal e aberta uma exepção á nossa regra nº 1 , nesse dia todos aqueles que choraram não seriam considerados umas "meninas" , qualquer acusação desrespeitosa aludindo ao facto teria consequencias ...
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