2007-08-12

Contos da Primaria , Leviandades

      Até ter idade para frequentar a primária havia muitos dias em que ficava sózinho em casa , a minha avó por vezes fazia-me companhia , infelizmente sofria de um tipo de claustrofobia que lhe causava horror permanecer entre 4 paredes , não conseguia estar longe da rua , era mais forte que ela ...
      Quando queria companhia tinha de dar asos á imaginação , por vezes tomar atitudes radicais como quando lhe escondi os sapatos , ela bem virou a casa toda mas só os encontrou quando a minha mãe chegou e teve de tirar comida para descongelar , nesse dia até jantou em nossa casa enquanto esperava que os sapatos descongelassem ...

      Como qualquer puto sozinho em casa , atraía os maus pensamentos , o dia em que retalhei á tesourada o unico retrato que o meu pai tinha da mãe , a minha falecida avo materna , foi decidido que as coisas tinham de mudar .
      Fui então para casa de duas professoras reformadas que tomavam conta de miudos . Eram duas velhotas muito simpaticas , ensinaram-me a ler e escrever , os numeros , as contas , problemas e um pouco de cultura geral .

      Um dia reuniu-nos , disse-nos que iamos ter um novo colega , que deviamos trata-lo duma forma especial porque tinha estado envolvido numa situação muito dificil , explicou-nos como deviamos lidar com ele mas fez segredo quanto ao que na realidade se tinha passado .
      Claro que não descansamos até saber o que acontecera ...

      O puto tinha estado envolvido naquele que foi o maior acidente de comboios até ao momento , dois vizinhos levaram-no num passeio a Vila do Conde na automotora , um choque de comboios matou todos os ocupantes , todos não , o puto sobreviveu , passou mais de 6 horas entre os cadaveres enquanto os bombeiros serravam a amalgama de ferro em que a automotora se transformara e quando já não tinham esperanças de encontrar ninguém vivo . Curiosamente o puto saiu ileso , fisicamente pelo menos , sem um unico arranhão .

      Não conseguia deixar de pensar naquilo , imaginava-me a mim , horas seguidas comprimido entre os cadaveres , pensava que provavelmente me teria borrado todo e que nunca mais voltaria a ser o mesmo e tinha cada vez mais curiosidade de conhecer o puto , apesar de depois de termos descoberto termos sido proibidos e jurado nunca abordar esse assunto .
      Intrigava-me sobretudo qual seria o estado de espirito do puto , como é que ele reagira a uma situação tão extrema , que é que ele havia sentido , que é que havia pensado durante aquelas horas , acho que nunca sentira tanta curiosidade antes , ah! ia ser dificil cumprir o juramento ...

      Até nem foi dificil , mal olhei para o puto percebi que não estava ali , tinha um olhar ausente de loucura e medo , assustado , tiques , não falava com ninguem e parecia desconfiar de todos . Fui invadido por uma tristeza enorme , olhar para o puto punha-me doente , percebi quão parvo fora na minha analise , apesar de toda a tragédia de que tinha noção , nunca tinha pensado nisso para além duma aventura , pensei que o puto tivesse levado um grande cagaço mas não tinha pensado seriamente nos acontecimentos , tinha sido muito leviano ...
      Foi uma lição que me viria a ajudar muito durante o resto da minha vida , espero que o Fernando tenha conseguido recuperar , nunca mais o vi ...



3 Comentários:

Às 16:02 , Blogger P. Guerreiro disse...

Fui apanhado desprevenido. Vou ler primeiro. Pareçe-me bem que vou gostar muito.

Um abraço e obrigado pelo DVD.
Até sempre.

 
Às 11:26 , Blogger Titá disse...

Regressei hoje de férias e vim deixar cumprimentos. Um beijo e um bom dia para ti.

 
Às 13:34 , Blogger Titá disse...

Tens um mimo para ti lá no meu blog.
beijo

 

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